
No episódio 2 do Chicotadas, Ada, Hugo e Kali continuam fazendo um panorama geral de termos e conceitos básicos do BDSM. Dessa vez, os temas desse bate-papo são bases do BDSM, space, drop, red flags, cenas, sessões, eventos da comunidade, regras e protocolos e como funciona o sexo e a não monogamia nas práticas e relações BDSM. Não vamos mentir: tocamos em assuntos polêmicos e o debate esquentou... Vem ouvir e conta pra gente nas nossas redes sociais o que você achou, se concorda ou discorda da gente e qual desses temas nós precisamos retomar primeiro em um novo episódio completinho!
No nosso próximo episódio, que lançaremos daqui a duas semanas, a gente vai continuar esse papo sobre termos básicos e abriremos alguns guarda-chuvas: falaremos sobre tops, bottoms, switchers, relações e diferentes dinâmicas no BDSM.
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Participantes: Ada, Hugo, Kali.
A vitrine do episódio tem uma foto de equipamentos BDSM de couro e metal, com luz avermelhada e filtro escuro com o título do episódio e a logo original do Chicotadas (a silhueta de um chicote longo posicionada para lembrar uma onda sonora, dentro de retângulo sólido).
Hugo: [beep] Atenção: esse conteúdo é produzido por adultos, para adultos, e não deve ser consumido por menores. Se você ainda não tem 18 anos, nós não damos o nosso consentimento para que você continue escutando.
Ada: Aqui é a Alene, meu nick é Ada, eu sou domme, mulher cis, demissexual, e hoje a minha palavra de segurança é: "Pelo amor de Deus, cadê meu sub doméstico?" Eu não aguento mais limpar a casa! [Risos]
Kali: Também quero. Oi, eu sou a Kali, demigirl, bi, top? É, top.
E hoje a minha palavra de segurança é "Meu Deus, gato, quanta carência!" Porque eu estou sendo feita de escrava pelo meu gato.
Hugo: Oi, meu nome é Hugo, de nick Hugo. Sou homem, hétero cis, switcher, e minha palavra de segurança hoje é "Quero um bom filme de BDSM", porque tá foda de achar bons filmes pra gente conversar aqui.
Ada: Ele assistiu um filme que só dele me contar uma cena eu já estava assim: não, não quero, não quero. Mas é difícil mesmo, filme de BDSM, bem feito, é complexo. Mas é que nem aquelas séries de medicina, né?
A vida do médico nunca é daquele jeito. O problema é que nos filmes de BDSM a gente é sempre muito mal retratado, né? Mas enfim, isso é tema pra outro episódio.
Kali: Que vai ter, com certeza.
Ada: Com certeza vai ter.
Kali: [som de chicote] Você está ouvindo o Chicotadas, um podcast entre tapas e cuidados, e demais gostos peculiares pelos quais você talvez se interessaria. Aqui nós vamos conversar sobre BDSM, sexualidade, não monogamia, poliamor e estilos de vida alternativos.
Ada: Este podcast é produzido por três amigos praticantes e membros ativos da comunidade BDSM, com diferentes gostos, anos de estrada e experiências. E a gente espera que você goste de nos ouvir e debater conosco sobre esse universo tão vasto e excitante.
Kali: Então, sobre o que a gente vai falar hoje? Conta pra mim.
Ada: Esse daqui é o episódio número dois, "Princípios básicos do BDSM 2". Vamos continuar falando sobre vários termos básicos que usaremos nos outros debates. Pra quem caiu aqui de paraquedas, é bom saber. Lembrando que no episódio 1, "Princípios básicos do BDSM 1", falamos das letrinhas do acrônimo, de consentimento, de baunilha, de kink, fetiche, tara, palavra de segurança, top, bottom, switch, negociação, aftercare, limites...
Ufa. E aí agora...
Kali: Muita coisa, credo. [Kali ri]
Ada: Muita coisa. E agora no episódio 2 tem mais coisa ainda pra falar. Hoje os temas são sexo no BDSM, não monogamia e BDSM. A gente vai falar um pouquinho de red flag, de bases do BDSM, de cena, play e sessão, space e drop, que são dois temas super importantes, e também um pouquinho sobre a comunidade BDSM, eventos BDSM, e um pouquinho sobre protocolo.
Muita coisa pra falar. Lembrando que é a mesma coisa que eu falei lá no episódio 1, gente. Cada um desses temas rende um episódio inteirinho só sobre eles.
Vamos realmente dar um panorama geral, porque se a gente fosse aprofundar seria 10 horas de episódio.
Hugo: E hoje tem polêmica!
Kali: Quando não tem, Hugo? Quando que não tem polêmica? Ixi, eu tô nesse podcast, cara. Meu nome do meio é polêmica.
Ada: Fetiche em treta.
Kali: Ah, eu tenho. [Kali ri]
Hugo: Mas assim, o tópico de hoje é, por si só, divisor de águas.
Kali: Sim.
Hugo: Mas vamos lá.
Ada: Lembrando que a gente não vai aprofundar, galera.
Então, olha... Aguarde.
Kali: Vai ser bem superficial.
Ada: Vai ser bem superficial, mas...
Kali: Dá aquele alô pra gente lá no Instagram, no Curious Cat, no nosso e-mail, um sinal de fumaça... e conta pra gente o que vocês querem ver primeiro disso. O que deixou dúvida em vocês? O que que vocês falam:
Tá, beleza. Isso aí é essencial que vocês se aprofundem. Porque, sério, tem muita coisa.
Ada: Começando. Eu vou confessar um negócio aqui pra vocês. Apesar de recentemente eu ter me descoberto e me assumido como demissexual, quando eu comecei no BDSM, quando eu comecei a pesquisar, assistir coisas, estudar, querer praticar, eu era aquela pessoa que falava assim: não, isso daqui é um jeito de enfiar coisas no sexo.
"Se não tiver sexo, não tem graça." E me falaram que nas festas não tinha sexo. E eu ficava tipo, ahn?
Quê? A Aleninha lá de 2017, 2018, pensando "não, gente, mas que chato. As pessoas só se batem? Que coisa esquisita. Será que eu quero ir nisso mesmo?"
Meio que eu ficava achando que as pessoas eram puritanas por não querer misturar sexo com BDSM. [Hugo ri]
Tipo, que coisa mais chata. Tipo, todo mundo transa, todo mundo gosta de sexo. Que saco esse povo falando que no BDSM não tem sexo.
Esse era o pensamento da Alene lá de trás. Fala, Hugo.
Hugo: Tia Alene, o que a senhora considera como sexo?
Ada: Aí pegou.
Kali: Pegou. Só esse assunto já dá um podcast inteiro de duas horas. [Ada ri]
A pergunta foi pra ela, mas eu vou responder um contexto que eu gosto. Pra mim, o sexo é tudo aquilo que acontece depois da negociação.
Ada: Olha, vou te falar que essa definição da Kali é uma ótima definição. Mas eu definia na época, e eu acho que eu ainda penso assim, que o sexo é, na realidade, aquilo que envolve genitais. Seja oral, seja masturbação, seja penetração. E que o objetivo é atingir o orgasmo.
Mas eu pensava que o BDSM só faria sentido pra mim se eu envolvesse sexo. E, na verdade, eu fui descobrindo que eu tava enganada. Cuspi pra cima, caiu na testa.
Porque eu descobri que é diferente o jeito que você joga, e que, apesar de, às vezes, eu jogar com os meus amigos e ninguém tirar a roupa, e não ter interação genital, existe um prazer, existe um tesão, existe uma carga erótica, sensorial e sensual muito grande. E que, mesmo não sendo sexual, é muito delicioso. Qual é a opinião de vocês?
Kali: Cara, depois que eu tive um orgasmo estritamente com manipulação dos mamilos, o que é sexo virou muito mais uma questão de se eu sinto que aquilo é sexo ou não. Se eu sinto que é, é. Se não é, não é.
Eu acho que a definição é pessoal de cada um. É que nem orientação sexual, é autodeclarado. Se pra você aquilo é sexo, é sexo. Se pra mim não é, não é. E as duas pessoas estão certas.
Hugo: Inclusive, uma pessoa pode estar sendo estimulada sexualmente sem a outra saber. O que não é bonito, mas pode.
Kali: Pode, realmente. [Hugo ri] Mas é aquela coisa, né? Tem gente que, por exemplo, gosta de massagem nas costas como estímulo sexual.
Aí você chega super inocente na pessoa e começa a fazer uma massagem nas costas porque pra você aquilo não é nada e a pessoa está excitada e você, tipo, não tinha essa intenção e... oh, crap.
Hugo: Sim, mas pra facilitar nesse episódio, a gente vai meio que usar como definição de sexo a definição mais simples, que é a da Alene, pra facilitar a nossa conversa aqui, mas tendo em vista que a gente considera como sexo algo bem maior do que isso. Só pra deixar claro e redondo porque a gente vai continuar conversando e tudo mais. Então temos essas duas definições e podemos escolher qual alternar.
Ada: Sim, eu acho que é muito relevante a gente falar disso nesse podcast e falar também da assexualidade no BDSM, que por mais que a gente saiba que a assexualidade não tem exatamente a ver com você gostar de fazer sexo ou não gostar de fazer sexo, e sim com os tipos de atração que você sente, ainda existe muito essa confusão e queremos desmistificar essa ideia de que pra ter BDSM você precisa, necessariamente, ter o que a gente conhece tradicionalmente como sexo. Porque, com certeza, não é um elemento fundamental.
Muitas vezes existe, sim, o tesão sexual, mas muitas vezes o prazer e o tesão é mental e não se reflete exatamente em pau duro e buceta molhada, mas pode sim ser muito gostoso, ser muito prazeroso, envolver um prazer sensorial, mental, estético, ser muito divertido. Então, os horizontes são muito mais amplos do que o que a gente pensa quando entra primeiro em contato pela mídia, por pornô e por esse tipo de conteúdo.
Kali: Eu tenho muito prazer estético, por exemplo, quando eu faço wax play, shibari, ou mesmo quando eu jogo com uma pessoa que eu considero atraente. O mero ato de ficar observando a pessoa, pra mim, gera prazer estético. Quando tem uma cena muito bonita e etc, isso é uma das coisas que acontece, né?
Ada: Explica o que é "wax", que acho que a gente já falou que é shibari no outro episódio, mas não falamos o que é wax play.
Kali: Os termos vão saindo, porque já estamos acostumados com eles, mas pra quem não sabe, wax play é a prática onde você derrama a cera de vela quente, derretidinha, no corpo da pessoa parceira. Você pode fazer desenhos, você pode causar dor, você pode só dar uma esquentadinha, tudo depende do material que você vai usar e da maneira como você vai pingar.
Dá pra fazer de várias formas e é uma prática visualmente legal pra quem tá assistindo, tem toda uma sensação pra quem tá recebendo, é bem gostosa.
Ada: E falando de definições do que é sexo, do que não é sexo, eu costumava achar que só faria sentido se, por exemplo, não vou fazer sessão se eu não gozar no final. Porque eu tinha essa ideia de associar muito ao orgasmo, a gozar e tal, e eu fui desconstruindo isso com o tempo, sabe? Hoje em dia não precisa de uma excitação sexual ou de um orgasmo pra eu considerar que foi uma prática muito gostosa.
Kali: Tem todo o lance do prazer lúdico também, de você sentir aquilo, é divertido, é gostoso, é engraçado. Divertido pra mim é o ápice da maior parte das práticas do BDSM. Se aquilo me diverte, eu tô fazendo.
Não precisa nem me dar tesão. Se é desafiador, se é intelectualmente estimulante. Por exemplo, no meu caso, que eu sou a louca das cordas, fazer uma suspensão difícil, elaborar uma cena, elaborar as transições e fazer todo aquele quebra-cabeça mental pra chegar e ter uma cena visualmente interessante pra quem está assistindo. Que seja prazerosa pra quem tá sendo amarrado e tudo mais. A hora que eu vejo no final aquilo, ou vejo um vídeo gravado, as fotos, eu fico tipo, nossa, que delícia.
Aquele prazer de se sentir competente, de se sentir foda. Ai, é muito bom.
Ada: Sim, tenho achado muito interessante também a coisa de construir uma narrativa, sabe? Compor uma cena ou uma sessão e passar por todas as fases que você queria e construir aquela historinha e conseguir chegar no final dela de jeito satisfatório, que faça sentido e que seja prazeroso pra todo mundo envolvido, eu acho muito divertido também.
Kali: Uma coisa que eu acho interessante disso é você fazer o flow, né? De uma prática pra outra, inclusive. Você não perder o ritmo também.
Ada: Eu preciso trabalhar muito isso ainda.
Kali: Todo mundo.
Ada: É um desafio, é um processo de ir entendendo como funciona pra você, como funciona pro seu bottom.
Hugo: Pra aqueles que são de signos, eu sou de peixes, então uma criatura imaginativa. Tem um fetiche à parte, que é de ficar imaginando as coisas. E eu percebo que existem várias práticas e várias coisas que elas ficam muito bem ali. E eu acho muito divertido.
Essa questão do planejamento, do pré, de você conversar com as pessoas sobre: "ah, você comprou aquilo, como é que funciona, como é que não funciona". Tá olhando num site nada a ver, de ferramenta, e vê o negócio e fica "será que dá pra usar?" Toda essa questão de ir se descobrindo e descobrindo ao outro. Eu acho uma delícia à parte, essa de teste, de imaginar, de pesquisar, de se inspirar.
Kali: A engenharia do BDSM.
Hugo: Exato, a engenharia da coisa. E na prática é muito divertido você ver todo aquele seu planejamento perfeito ruindo como planejamento.
Ada: Sim! Aprendi isso bem cedo, que não dá pra planejar demais, porque você vai se frustrar.
Hugo: Exato. Mas aí você vai aprendendo na prática, a entender que o planejamento é uma linha condutora, é muito boa, muito válida, mas você tem que ir, na verdade, administrando ele e seguindo o flow.
Kali: Usar muito o feeling, né?
Hugo: Exato. Usar muito o feeling. Sentir a pessoa e sentir você, e ir muito pelos instintos mesmo. Eu acho que isso faz toda a diferença entre o jogo ao vivo. A gente ainda grava em pandemia, e jogando a distância, isso é muito menor. Ontem eu joguei, tipo, eu vi que a pele ficou rosada, mas não sei o quanto está rosada, não sei se está quente.
Kali: Faz falta, né, colocar a mãozinha assim e sentir aquele quentinho do rosado da pele.
Ada: E sentir a sensação, a pele, a respiração, e ir construindo esse clima, esse flow.
Kali: Respirar no ouvidinho, né? Saudades.
Ada: Sim! Fazer aquele ASMR ao vivo, no ouvidinho da pessoa. Ai, meu Deus, que saudade.
Hugo: Muita saudade.
Kali: Tem uma coisa muito doida do BDSM também, que a gente fala muito de, tipo, ah, porque você vai na festa, vai não sei onde, vai lá e vai jogar, isso e aquilo, né? Aí as pessoas que estão acostumadas com a questão da monogamia, a regra da sociedade hoje em dia, basicamente, a maioria das pessoas que a gente conhece é monogâmica, ou está monogâmica, enfim, aprendeu a ser monogâmica, como a única alternativa viável. A galera deve ficar pensando "nossa, mas vocês do BDSM são tudo tão promíscuos" e, na verdade, não! Na verdade, a gente só é livre, transita entre as relações, entre as pessoas ali.
E é muito engraçado, porque ao mesmo tempo, eu vejo no BDSM muitas relações estritamente monogâmicas, mega fechadas, e você fica, tipo: nossa, que estranho.
Ada: Sim, é um negócio muito louco pra definir, porque, por exemplo, se tudo que acontece depois da negociação é sexo, então como funciona as pessoas que jogam com outras pessoas em evento, por exemplo? Seja porque o top da pessoa, o top "monogâmico" da pessoa, não tem experiência naquela prática, ou seja, porque um top específico tem um bottom que tem uma relação mais mono, mas pratica com diferentes bottoms durante a festa, porque é especialista em alguma área, ou pra passar uma sensação que aquela pessoa ainda não teve acesso, ou que ela não tem um parceiro pra praticar, ou porque é autoridade numa determinada prática e faz demonstrações em eventos, né?
E a gente encontra muita gente que quer levar o BDSM de forma monogâmica, mas ao mesmo tempo, nos meios onde a gente circula, a não monogamia é mais presente. Muito presente. Seja no BDSM, seja no baunilha, porque às vezes a pessoa tem um parceiro baunilha, outro parceiro BDSM...
Kali: Eu tô vivendo um pouco esse dilema. A galera vai estar ouvindo isso aqui bem mais pra frente, né? Mas eu sou top, porém eu tô em negociação como bottom com o meu namorado.
A nossa relação baunilha é estritamente monogâmica, é uma relação fechada, mas ao mesmo tempo eu permaneço dando minhas aulas, permaneço amarrando em evento, permaneço fazendo as paradas e pra mim isso tá bem confuso, sabe? Essa questão do tipo: tá, é fechado ou não é? Mas, assim, e daí quando a gente conversa: "não, é fechado, fechado sim".
"Fulano me pediu pra eu amarrar a sub dele". "Ah, beleza, de boas". "Então eu posso amarrar?", "Pode". "Tá, mas pra mim amarrar é tipo sexo". "Não, mas tudo bem", grilos. Muitos grilos.
Eu fico só o meme da Nazaré, sabe? É confuso. Eu entendo que mesmo no...
Pras pessoas mais monogâmicas, no BDSM, existe uma certa tolerância, uma área cinza ali, né? Que as pessoas, tipo, ficam, isso aí é ok, isso aí eu não considero que você esteja me traindo ou ferindo o combinado. E no final das contas, meus dois centavos sobre monogamia e não monogamia no BDSM é: gente, sejam fiéis, leais aos acordos de vocês.
Só isso. Combinou? Cumpre.
De resto, vão se divertir, usem camisinha, sejam felizes.
Hugo: Eu acho que o jogo do BDSM é muito isso, deixar claro, inclusive aquilo que não está tão claro pra você. Porque pode um dia ficar claro, ou você mostrar que está em dúvida, também é parte de deixar claro as coisas.
Kali: Né? Deixar claro que existe uma dúvida.
Hugo: E deixar claro que existe uma dúvida é deixar claro. Ou que tem uma vontade, um sonho, um desejo... penso muito nesse lugar. Você pode fazer com ou sem penetração, mas é impossível dizer que não vai ter algum tipo de envolvimento sensual, sexual, ou algo do tipo, porque vai. O BDSM tem isso como regra.
Kali: É meio que a premissa do próprio BDSM, né?
Ada: A troca sensual, sensorial e erótica.
Hugo: Pode ter com penetração ou sem penetração, que as pessoas colocam como "com sexo" ou "sem sexo", que a gente já explicou antes, e ser monogâmico ao seu acordo, né?
Ada: Ser fiel ao acordo, né?
Hugo: Se o seu acordo permite fazer outras coisas, faça. Se não, não faça.
Ada: E no fim das contas, se tem uma coisa que o mundo baunilha e monogâmico pode aprender com as melhores práticas do mundo poliamorista e/ou do mundo kink, é a tal da comunicação.
Kali: Nossa, gente.
Ada: Que a gente tenta.
Kali: É primordial. A gente tenta. E realmente facilita muito a vida. Até uma questão que eu vivo perguntando pra galera que tem, né?
No poliamor, a gente administra. Já tive relacionamentos simultâneos, né? Eu tive três relacionamentos simultâneos.
A gente administra eles da melhor forma que a gente puder, mas eu acho muito doido o lance dos irmãos de coleira. Porque, cara, um bottom, normalmente um submisso, que geralmente é quem vai ter o irmão de coleira, é difícil de você dar toda a atenção que ele precisa e tudo mais. Pensa mais.
Galera que tem aqueles canil enorme. Que doideira. Eu acho incrível.
Ada: Ah, é! Irmão de coleira seria assim: dois ou mais bottoms que são bottoms do mesmo top.
Então, é um top que tem dois ou três bottoms. A gente chama de "irmãos de coleira" porque são pessoas que têm coleira do mesmo top.
Kali: E o coletivo disso, geralmente, é "canil", né?
Ada: Tem uma galera que tem haréns. E eu fico assim, gente, mas... Acho que até dois que exigem muita atenção, você consegue administrar.
Mas, três que realmente precisam da sua presença...
Kali: Acho que só se morar todo mundo junto. Acho que dá boa. Mas, nossa, eu acho incrível, sabia?
No FetLife, às vezes você vê aquelas leather family. A leather family é a família de couro, né? Que é quando, por exemplo, tem pessoas que têm afinidades, elas podem ou não estar em uma relação BDSM e elas se juntam como se fosse uma família, uma irmandade.
Podemos dizer que a gente aqui é a leather family Chicotadas, né?
Ada: Sim.
Kali: Eu vejo leather families gigantescas no FetLife e pessoas com aquele rosário de bottoms e eu fico, tipo, nossa, gente, que incrível. Vocês moram tudo junto? Acho muito legal.
Hugo: Mas eu acho que existe também as pessoas que praticam uma vez no mês e pra elas acontece menos interação.
Ada: Menos manutenção, né? Um relacionamento de baixa manutenção.
Hugo: De baixa manutenção. Assim consegue. Você ter 30, uma vez por mês, dá pra você se divertir bastante.
Kali: Eu sou uma pessoa de alta manutenção, gente. Se vocês não me derem atenção o tempo todo, eu sou uma plantinha que murcha sem atenção.
Hugo: Exato, né? Cada um vai ter o seu jogo, não dá pra gente julgar.
Kali: É. Por exemplo, eu sei que como uma plantinha que murcha sem atenção, preciso de atenção pra caramba, diretão. Então eu comunico essa minha necessidade pra pessoa que está comigo. Seja baunilha, seja BDSM, whatever.
Quando eu tava negociando com o sub, eu falava assim, ó, você tem que me dar atenção direto e sem eu precisar demandar de você. Você tem que vir aqui e me cobrir de atenção, tá bom?
Ada: E se é um bottom que precisa da sua atenção e que tem medo de atrapalhar, aí não rola. Não funciona.
Kali: Atrapalha, sim. Vem cá e atrapalha, desgraça. Pode atrapalhar. Tá autorizado a atrapalhar.
Ada: Por que a gente entrou nessa questão da não monogamia do BDSM? "Irmãos de coleira" é um termo que é amplamente aceito pela comunidade há muito tempo.
Super comum, é meio que de amplo conhecimento que tops vão querer ter mais de um bottom e acabou, assim, bem entre aspas.
Kali: É meio que um direito adquirido dos tops. [Risos]
Ada: E assim, pra esse lado mais tradicional, mais velha guarda do BDSM, tem muita gente que defende o irmão de coleira e que é muito contra a ideia de ter mais de um top ao mesmo tempo.
Que é o co-topping. Ou a situação em que a pessoa tem, por exemplo, dois donos.
Supostamente é muito difícil, porque... E se as duas pessoas derem ordens conflitantes? E se a pessoa quiser marcar com o bottom no mesmo dia que a outra pessoa quer marcar?
Adivinha, como que a gente resolve todas as outras questões do BDSM?
Kali: Diálogo.
Kali e Ada: Comunicação!
Kali: Conversa. Poxa, é tão fácil, né, gente?
Mas é uma coisa muito engraçada, né. E se os dois resolverem marcar pro mesmo dia? Vai todo mundo pra sessão, ué! Os dois param ali e o bottom se fode duas vezes!
Hugo: Tem um detalhe. Eles aceitam o co-topping em eventos para se amostrar. Eles não aceitam como estilo de vida.
Ada: Ah, sim. Pra mostrar técnica, dois tops ao mesmo tempo numa cena, numa sessão, até vai! Mas, geralmente, a galera mais tradicional não gosta muito da ideia de ter mais de um dono. Eu acho que se os dois tops se derem bem e conseguirem entrar num acordo, pode ser até benéfico!
Porque os dois combinam de fuder o bottom juntos, entendeu? E o bottom vai ficar duplamente mais feliz.
Kali: Eu fico olhando assim, gente, sério que só eu só vejo benefícios nisso?
Ada: E os praticantes acabam tendo necessidades diferentes também. Um dos tops vai cuidar mais de uma área e de um tipo de prática, enquanto o outro vai mais pro outro lado.
Um top é mais sádico e o outro top é mais disciplinador.
Kali: Disciplinador e mais caregiver. Nossa, vamos pegar um exemplo. Nós duas aqui.
Eu sou mais assim do tipo vai, faz o que você quiser, se vira, não fica dependendo de mim, não. Só me dá atenção e etc. E deixa eu te amarrar, que tá tudo bem.
E você já é mais do tipo "eu quero controle, eu quero que você me peça permissão pras coisas". E eu tipo, "Vai lá pedir pra tua outra dona, que eu não mando nisso aí não".
Seria uma parceria muito de boas. Sortudo do bottom que fosse de nós duas, né?
Hugo: E aí precisa ter sempre uma boa comunicação entre os três pra alinhamentos. Pede coisas bem práticas. Tipo, olha, eu peguei pesado na banda direita da bunda. Então, se você quiser pegar pesado, pega pesado na esquerda.
Kali: Ou tipo, ah, digamos que fôssemos nós três. Moramos todos sozinhos, cada um na sua casa. Ah, essa semana o Hugo vai lá em casa e vai limpar meu banheiro, no sábado. Ah, então no domingo ele vai na outra. Fechou?
Porque não tem como ir nas duas no sábado, mas dá pra ir no sábado e no domingo. Ou vai na sexta em uma, vai no sábado na outra e no domingo a gente faz sessão. Bem lindo.
Hugo: São coisas a se organizar. Organizando direitinho, todo mundo faz o que quer.
Kali: Exatamente. É só conversar, gente. Nossa, pra mim não tem, velho.
Eu acho que o que falta pra essa galera é conversar um pouquinho, dar uma dialogada. Olha, a vida seria muito mais fácil.
Ada: [beep] Ah, gente, aqui entra um adendo que acabou que o debate, no dia dessa gravação, a gente acabou indo pra um lado mais de provocação dessa galera que tem ideias muito rígidas sobre o que você pode e o que você não pode fazer nas suas relações no BDSM. O que a gente quer dizer, na verdade, é que você não precisa viver de forma mono e que você não precisa viver de forma não mono também, ou de forma poliamorista. Tudo depende de relação, tudo depende dos acordos. Tem muita gente que vai preferir ter relações exclusivas e tá tudo bem, tá tudo certo.
Tem muita gente que realmente é monogâmica, inclusive tem relação que é baunilha e BDSM e as duas ao mesmo tempo e é fechada.
São vários formatos, não estamos aqui pra te dizer que você tem que viver de um jeito X ou de um jeito Y. Seja feliz, viva sua relação do jeito que vai deixar vocês felizes, não ache que outra pessoa tem direito a cagar regra na sua relação, entendeu?
Eu queria vir aqui gravar esse novo áudio pra deixar isso claro, porque talvez possa parecer que a gente tava cagando regras sobre o BDSM ser sempre não mono, e não é. Tem gente que é estritamente monogâmica ou que a relação DS é estritamente monogâmica e tá tudo bem. A gente vai falar mais dinâmicas e dessa questão de posse e tal no episódio 3. [beep]
Ada: Eu acho que onde tem mais ainda essa interseção que a gente percebe é que no BDSM fica ainda mais claro como nem sempre um único parceiro vai ser suficiente pra suas necessidades no geral, no relacionamento. Porque tem essa coisa das práticas que fica mais claro, né? Às vezes você tá com top, tá com bottom que não vai curtir todas as práticas que você gosta.
Aí você quer explorar aquela prática que é limite pra outra pessoa. Se você é monogâmico acabou, você nunca mais pode fazer nada... Então a gente acaba entendendo isso de uma forma um pouco diferente, flexibilizando desses lados.
Porque a gente entende na prática, no BDSM real, como uma só pessoa não supre todas as necessidades da outra. Não existe compatibilidade 100%.
Hugo: E aí você não fica esperando o seu príncipe de olhos azuis no cavalo branco. Você descobre que você vai pegar um de olhos azuis, o outro que tem um cavalo branco e o outro que é príncipe. Mas não os três na mesma pessoa.
Kali: E é aquela coisa, né? A gente não pode ficar esperando o príncipe porque às vezes a gente olha e acha o príncipe e, na verdade, ele vem com aquela flâmula grandiosa vermelha tremulando atrás dele.
Porque, cara, se tá muito perfeito, você pode escrever: não tá certo.
Por que eu digo isso? A gente tem uma coisa no BDSM que se chamam "red flags". Red flags (bandeiras vermelhas) são as dicas, digamos assim, que uma pessoa te dá de que ela é potencialmente abusiva.
Hugo: Ou são dicas que a pessoa te dá ou são atos que ela cometeu no passado, naquela comunidade, que não tornam elas bem quistas, vamos dizer assim.
Kali: Ela não é uma pessoa segura, né?
Hugo: Exato. Normalmente essas práticas são algum tipo de abuso e outras coisas.
Ada: São sinais de alerta.
Kali: Bem isso. O alerta mais clássico de todos é da pessoa que no passado já desrespeitou a safe word de alguém.
Uma pessoa que ouviu a pessoa gritando "vermelho" e esperou um pouquinho deliberadamente pra parar o que tava acontecendo. Ah, mano, para.
Na boa, não tem outro nome pra isso, né gente? Não tem.
Ada: Vamos fazer um episódio só sobre red flag porque realmente é bem importante destrinchar todos os possíveis sinais de abuso. Mas, no geral, aquilo que é um sinal de abuso no baunilha também vai ser um sinal de abuso no BDSM se não tiver sido negociado previamente. Por exemplo, você pode negociar um fear play, uma prática de dar medo na outra pessoa ou de chantagear outra pessoa.
Mas se você não negociou prática de chantagem e tem alguém te chantageando, não é muito legal você estar com essa pessoa.
Kali: Não é fetiche, é abuso. Qualquer coisa, se você não negociou com a pessoa que ela pode te bater, ela não pode te bater. Se você não negociou com a pessoa X, ela não pode fazer X. E se você negociou X, ela não pode fazer Y.
Hugo: E não se negocia durante a sessão. Toda negociação tem que ser feita com calma e parcimônia. Tanto é que o padrão é que você, normalmente, negocie em um encontro e faça a prática em outro.
Kali: Ou pelo menos algumas horas depois. Você vai sentar aqui pra negociar e depois você vai fazer.
Por exemplo, festa, evento que você só tem aquele dia. Você conheceu a pessoa ali e quer fazer alguma coisa, você senta conversa, chega num denominador comum, vai lá e faz a prática. Não atropela as coisas.
Tem esse processo. Justamente o que deixa o BDSM interessante é que você pode decidir o que vai ser feito com você, como vai ser feito com você, porque vai ser feito com você e quando.
Se você não chegou na hora, você, sei lá, precisa fazer xixi, você tá com câimbra, você tá com cólica, você cansou, você não quer mais, a safe word retira o consentimento. É isso que eu acho a coisa mais bonita do BDSM, que você pode retirar o consentimento na hora que você precisar. Tops e bottoms.
Ada: Vocês falaram da negociação ser antes, outra coisa importante, que eu não lembro se a gente falou no episódio 1, é a gente sempre negociar são, no sentido assim: estamos sóbrios de substâncias no sangue e também de tesão.
Você não negocia quando está explodindo de tesão, louco pra fazer isso imediatamente agora, nesse momento, porque é uma não sobriedade, né? De certa forma.
Kali: Concordo. Essa questão de você estar são, né? O consentimento, pra mim, ele só é pleno se você estiver totalmente sóbrio, livre de substâncias no sangue, etc. Se você estiver com sanidade mental pra isso, tipo, se você não estiver em crise de ansiedade, numa bad, num drop, com muito sono, se você não estiver doente, se você não estiver com muito tesão.
Se você estiver, sei lá, acabou de sair de um acidente de carro, e daí você senta e vai no WhatsApp pra conversar e negociar com a pessoa? Não, velho.
Falando, né, nessas questões de se estar são, a gente entra um pouco próximo da base mais comum do BDSM. O que é uma base? Pra começar, né? Antes da gente falar da base mais comum, falar o que que é uma base.
Eu enxergo como um guia de como aquela pessoa vai jogar.
Por exemplo, se eu uso a base A, eu vou jogar de uma forma, desenvolver tais práticas. Se eu uso a base B, eu vou jogar de outra forma, desenvolver outras práticas, fora aquelas primeiras.
Ada: Ou, por exemplo, em determinados relacionamentos e momentos, eu posso privilegiar uma base, e aí em outros, por exemplo, uma prática numa festa, eu vou levar uma base como guia, e aí uma prática com alguém que eu já tenho um relacionamento mais estável, levar como guia uma outra base, por exemplo.
Kali: A mais comum, que 90% da literatura BDSM vai falar, é o SSC (São, Seguro e Consensual). Consensual no sentido de consentimento, não de consenso. A gente não está falando de consenso entre as pessoas, em todo mundo concordar sobre um determinado assunto, e sim em dar permissão para que algo seja feito.
Seguro, a gente entende que é um termo relativo, de seguro, na vida, só a morte mesmo. A questão de seguro é o mais seguro possível, dentro do humanamente possível. É uma base bem usada, e eu acho que ela é uma base muito legal pra você começar no BDSM, pra você usar em parceiros que você acabou de conhecer.
Pra um primeiro momento, eu acho ela perfeita.
Hugo: Ela é aquele primeiro guia que dá pra você perguntar se o que você tá fazendo é seguro, no sentido de… aí dentro do seguro vão aquelas perguntas: Você entende os riscos que estão sendo aceitos? Você tem as respostas pra caso eles aconteçam? A pessoa que tá do outro lado tá aceitando com tudo e ela sabe exatamente o que vai acontecer? E eu tô pleno das minhas dificuldades? Tipo, olha, você assinaria um contrato assim?
Você não assinaria um contrato depois de beber, você não dirigiria um carro depois de beber.
Kali: Não se dirige com sono também, né?
Hugo: É, você tem certeza do que tá fazendo.
Kali: Tem uma outra base que também é bem usada, que é o RACK (Risk-aware Consented Kink), é o Fetiche Consentido com Ciência dos Riscos.
Ada: "Kink" a gente pode traduzir como fetiche ou como prática, depende da situação. Nesse sentido acho que é Prática Consentida com Ciência dos Riscos. Porque fetiche, como a gente viu a definição no primeiro episódio, fica uma coisa meio ampla.
Kali: Acho que prática cabe melhor, sim. Essa eu gosto muito. Porque ela engloba, inclusive, as práticas mais arriscadas. Que é o famoso Edgeplay. Que são aquelas práticas que você sabe que o risco é grande e mesmo assim vai lá fazer. Tipo, espetar agulha no amiguinho, cortar a pele do amiguinho e deixar sangrar, brincar com o sangue do coleguinha, entre outras, né?
Pendurar a pessoa de cabeça pra baixo…
Ada: Que são práticas bem mais arriscadas, que você tem que estudar. Pra qualquer prática que você for fazer, precisa estudar. Mas pra essas, você tem que estudar ainda mais.
Inclusive, uma das práticas que pode ser considerada Edgeplay é o shibari. Muita gente acha que é só ir lá, dar uma amarradinha e tá tudo certo. [Risos]
Kali: Quando eu dou o curso, eu sempre falo assim, cara, se eu quiser ser bem dramática com relação aos riscos, primeiro risco e mais definitivo de todos é que você pode matar alguém amarrando ela no shibari. Faço aquela pausa dramática.
Mas isso é muito difícil de ocorrer. Só se você fizer uma suspensão e fizer uma cagada bem grande. E assim, gente, palavra de quem já fez uma cagada super grande. É bem difícil matar alguém. Mas pode acontecer.
Hugo: É mais "fácil", por exemplo, deixar a pessoa sem os movimentos da mão. Olha só, que legal.
Kali: Tetraplégica. Facinho deixar a pessoa tetraplégica, no solo. Não precisa nem fazer suspensão.
Hugo: Sim. Então, ter a ideia dos riscos, é pensar sempre em como minimizar eles e ir atrás disso.
Kali: É isso. Estudar, estudar, estudar pra ser bom no que você faz e não deixar teu parceiro correr riscos.
Ada: O que o RACK (Risk-aware Consented Kink) traz, que é muito interessante, é o fato de, assim, vai ter risco, e o importante é que todo mundo que participe tenha consciência deles.
Você não vai jogar com alguém pela primeira vez numa festa e só confia que aquela pessoa vai saber o que tá fazendo. Ela precisa te explicar: eu vou fazer isso, vou fazer aquilo, vou fazer aquilo. Você pode ter uma sensação assim, pode ter uma sensação assada.
Por exemplo, num shibari irresponsável, num shibari que não teve uma negociação clara antes, a pessoa pode ter um formigamento que ela acha que é natural, e é um formigamento do tipo solta essa pessoa agora ou ela vai perder o movimento da mão.
Kali: Exatamente.
Hugo: "Mas era só um formigamento no dedinho mindinho dela". Pois é, era o nervo dela pedindo socorro.
Kali: É normal? É normal. É normal que o nervo peça socorro quando ele está sob estresse. Isso não quer dizer que seja menos arriscado você manter ela ali, que não seja exatamente esse o sinal pra você tirar a pessoa dali.
Hugo: Exato.
Ada: É porque a pessoa que nunca fez uma aula de shibari, por exemplo, vai pensar, ai, tá formigando porque está restringindo a circulação.
Mas não, tem o bom formigamento e tem o mau formigamento. Bad, bad formigamento.
Kali: Deixa eu até fazer um comentário. Mas eu acredito que esse podcast vai ser lançado no dia seguinte do meu workshop básico.
O workshop para bottoms, tô querendo marcar pro mês de novembro, ele é gratuito tá gente? Vou fazer ele pelo Google Meet e vai ser gratuito. Vai ter acessos liberados aí.
Vai ser uma turma grande mesmo. Então, bem importante que as pessoas que querem ser bottoms de shibari assistam pra poderem aprender a mitigar os riscos. Como é que você tá ciente dos riscos?
Você estuda, você aprende, pesquisa, conversa, troca ideia com os outros, você pergunta. Não só pro top, mas pra outros bottoms. Não só pro bottoms, mas pra outros tops.
Porque assim, eu, Kali, tô agora começando a aprender outras práticas como bottom.
Em shibari eu já fui amarrada uma pá de vezes por várias pessoas muito competentes e o escambau. Por gente que não era competente também. Aprendi a diferenciar uma boa amarração de uma má amarração e tudo mais.
Mas assim, você não só experimenta, mas você conversa.
Com relação às práticas que eu estou aprendendo como bottom. Eu vou lá e pergunto pra outros tops e pra outros bottoms. Porque é muito importante você ter essa troca e você falar assim: cara, quando eu sinto o impacto dessa forma, tá certo?
Ah não, tá certo. A sensação que você vai provavelmente sentir é alguma coisa perto disso. Ah não, beleza.
Por exemplo, eu já recebi umas dicas de posições, pra você apanhar, que dói menos. Olha só. [Risos]
Ada: Hashtag truques.
Kali: Foi muito legal, porque numa outra sessão fui lá e testei essas dicas e elas realmente funcionam, gente. Mas assim, pesquisa, vai atrás.
Não necessariamente você vai ficar no Google pesquisando "posições para apanhar que dói menos". Não, gente. Conversa com a galera. A comunidade tá aí pra isso. A comunidade é muito importante para trazer a segurança.
A comunidade vai te ajudar a identificar a galera que é red flag, te ajudar a identificar bons praticantes, a ter conhecimento técnico. Cara, comunidade é top. O que mais?
Hugo: Só dar uma dica. Se a pessoa te exclui da comunidade, isso costuma ser um sinal de alerta. De toda comunidade.
Kali: Verdade. Se você viu que uma pessoa foi banida da comunidade ou que a pessoa fica assim, ah, é porque eu sou fora do meio, alerta. Não quer dizer que ela seja obrigatoriamente uma pessoa escrota.
Mas assim, gente, alerta, né?
Hugo: E assim, ok que temos pessoas que a gente gosta mais, gosta menos, tem pessoas que a gente confia. Agora, se ela vira e diz para não comentar com ninguém o que está acontecendo, seja isso relacionado ao BDSM ou não, isso é um forte sinal de alerta.
Ada: Ou se ela isola você e começa a falar mal de todos os seus contatos e te afastar das pessoas…
Kali: Alerta vermelho, gente.
Hugo: Alerta vermelho.
Kali: Nós falamos dos red flags, falamos das bases, voltamos aos red flags e vamos voltar nas bases então. Tem mais duas bases, uma bem famosa até. A terceira mais citada.
Ada: Que é a PRICK (Personal Responsability, Informed Consensual Kink) ou Práticas Consentidas e Informadas com Responsabilidade Pessoal.
Kali: Porque assim, tem muita gente que usa o PRICK como base, mas é mais a galera sex worker e ele tem a ver com cada um ter a sua responsabilidade pessoal sobre a própria segurança e só.
Eu acho ela muito estéreo, ela é meio distante demais.
Ada: Impessoal.
Kali: É, impessoal demais. Eu sei lá, não curti.
Ada: Ah, e na questão de ser impessoal, também tem isso. Nós, a equipe do Chicotadas, não recomendamos que você que tá chegando no BDSM agora, que está conhecendo o BDSM agora, que tá começando seus estudos, que você tente embarcar numa prática baseada em PRICK, porque ela é usada em contextos muito específicos, em situações muito específicas, geralmente pela galera que tem uma relação mais comercial com aquela prática e também tem muita polêmica sobre como ela surgiu e etc, etc…
Então, a gente está falando porque existe, é importante citá-la, mas não recomendamos que você que está chegando nesse mundo agora use-a nas suas práticas.
Kali: A gente recomenda que você que está chegando agora use o SSC (São, Seguro e Consensual). Vai no SSC que é mais jogo.
"Ah, mas eu gosto de umas coisas bem loucas". Começa pelo SSC e depois você vai pro RACK ou RACK-S. O que é o tal do RACK-S?
Cara, conversando, eu e Mariana Rodrigues um dia, num grupo de WhatsApp, a gente estava batendo papo sobre o SSC e sobre como a gente considera a parte da segurança dele meio que uma utopia. Porque a gente sabe que é mais seguro possível, mas sabemos também que existem praticantes que levam isso muito ao pé da letra e ficam, não, porque se tá no SSC é porque é seguro sim. Aí você fica pensando "tá…".
A gente estava batendo papo sobre isso e nós duas somos praticantes que usamos o RACK , então a gente parou e concordou que o que falta no RACK é explicitar que você tem que estar são.
No RACK-S, o S é de "sane" (são, em inglês). É você ter noção das práticas que você está fazendo, você estar 100% consciente do que você tá fazendo, você estar mitigando ao máximo os riscos e você estar sóbrio, são, centrado com a cabeça no lugar, estar bem o suficiente pra que você possa realizar aquelas práticas. Até mesmo pra você negociar aquelas práticas. Então o RACK-S é a base que eu sigo pra vida.
Uma outra coisa que a gente fala bastante, né, a gente fala muito em cena, festa, sessão… Conceituar isso seria interessante, pra galera entender mais do que a gente tá falando.
Pra festa, a gente também usa o termo play.
Uma play é uma play party, que é um evento BDSM, basicamente. É uma festinha de quaisquer proporções, pode ser uma puta festona ou pode ser uma festa, tipo, meia dúzia de pessoas na casa de alguém, uma musiquinha rolando e cenas públicas.
Ada: Mas você não fala, tipo: eu vou fazer uma play com essa pessoa? Vamos fazer uma play? Vamos marcar uma play?
Kali: Não.
Ada: Às vezes eu falo. Se é uma coisa mais rapidinha.
É, tem isso gente, os termos cena, sessão e play pra algumas pessoas são intercambiáveis, pra outras pessoas não são. Pra mim, cena e sessão é diferente. Mas pra muita gente é a mesma coisa.
Pra mim, cena é uma coisa que você faz pra outras pessoas verem. Então é numa festa, num evento. E sessão é uma coisa mais fechada e que geralmente é mais longa, geralmente tem um planejamento diferente, um fluxo diferente, e cena já é aquela coisa que pode ter vários elementos que você faz na sessão mas que é mais no sentido de cena mesmo, de performance. Você tá fazendo num ambiente mais público.
Mas tem gente que usa intercambiável.
Eu vejo que no inglês, por exemplo, "scene" é usado para as duas situações. Algumas pessoas usam "session", mas é mais comum que as pessoas usem "scene" pras duas situações.
Kali: Eu acho intercambiável os termos play e cena. Sessão é o longo, privado, separado. Pra mim, play é sempre público e cena é sempre pública.
Pra mim, o que diferencia uma cena de uma sessão é o fato de ser público ou privado. A sessão vai ser sempre privada, por mais que seja uma sessão coletiva com, sei lá, dez pessoas. E uma cena vai ser sempre num evento público com a possibilidade de interrupções e da coisa toda que uma festa ou um evento possibilita.
Ada: E pra você, Hugo?
Hugo: Eu tô mais com a lei de que você pode intercambiar mas eu vou levar a entender que quando se fala que foi uma cena ou que tinha algum apelo dramático ou que tinha um público de fato, seja que aquilo estava sendo gravado pra assistir depois, aquilo tava sendo transmitido pra alguém ou numa festa.
Aqui vale outra nota que é: as pessoas que vão assistir também devem consentir em assistir.
Ada: Verdade.
Kali: Sim, importantíssimo.
Hugo: Portanto, se você for fazer uma cena em que seja desejável público, que o público esteja consciente disso. Ou seja, só numa festa ou algo assim. Em nenhuma hipótese pode ter menores de idade, por motivos óbvios.
Se você for numa festa, saiba que você vai ver. É comum que você veja uma pessoa apanhando, uma pessoa amarrada, uma pessoa pelada. Normalmente as coisas que envolvem sangue, sejam cortes ou agulhas, as pessoas avisam antes que vai acontecer cena com cortes e agulhas. Mas fora isso...
Kali: Você pode muito bem entrar numa sala e ter lá uma pessoa espetada que nem um porco espinho.
Hugo: Se você tem algum tipo de trauma, gatilho com sangue, agulhas e coisas assim, avise pra alguém da organização ou pra um amigo pra ele te dar essa monitorada, porque você pode ver esse tipo de coisa.
Kali: Nos eventos, normalmente, tem o que a galera chama de Dungeon Master, basicamente o mestre de cerimônias é o anfitrião do evento.
E às vezes, se for um evento muito grande, ele pode chamar pessoas para serem monitoras. Em 2017 eu organizei uma festa, eu e o Maurício éramos os Dungeon Masters da festa, mas nós tínhamos dois outros Dungeon Masters auxiliares, mais dois monitores que ficavam supervisionando todas as cenas e tinham o poder de intervir nas outras cenas, caso eles vissem alguma cagada acontecendo, alguma coisa dando errado ou alguma cena que descumprisse as regras da festa.
Eu não me recordo agora direitinho o que era que não podia lá, mas por exemplo chuva dourada não podia. Ver Google: o que é golden shower. Acho que agora com essa referência todo mundo já sabe. Mas, basicamente, chuva dourada consiste em fazer xixi no amiguinho. Não era permitido por motivos de faz sujeira.
Ada: Geralmente, fluídos corporais tem essa proibição em festas, porque quem que vai limpar depois?
Kali: Normalmente, em festas a galera escolhe práticas menos arriscadas, um índice de VDM um pouco menor. Índice VDM: Vai Dar Merda.
Ada: Normalmente, sexo é proibido. Sexo tradicional, como a gente definiu no começo do episódio, com penetração.
Kali: Penetração e sexo oral, normalmente. Masturbação geralmente pode, contanto que seja mais discreto.
Hugo: Pode botar aquele vibrador interno por controle remoto e depois se divertir, mas as coisas explícitas costumam ser…
Ada: E práticas mais hard, mesmo asfixia, asfixia tem muita gente que faz no sexo baunilha, mas é bem perigoso, você tem que ter bastante noção pra fazer do jeito seguro.
Kali: Asfixia eu considero Edgeplay, pra caramba. Porque é uma prática que o índice VDM dela é altíssimo, pode dar merda muito fácil.
Acho muito legal que a gente fala de festas, tem vários tipos de festas, né? Tem as play parties, que são as festas como se fosse uma baladinha BDSM, tem música, cenário, decoração, tem masmorra montada, a galera vai toda produzida. Eu acho sensacional a play party.
Tem os munches, que são os jantares, piqueniques, etc.
Ada: Munches são os eventos que normalmente são em ambientes baunilha, tipo, você vai marcar uma reunião, por exemplo, o Atados no Parque. O Atados é um munch, é um munch com um pouquinho de prática. As práticas que a gente faz no Atados não são a mesma coisa que a gente vai fazer num evento fechado.
Kali: No Atados, a gente faz o shibari e o bondage de maneira estritamente artística. Estritamente como expressão de arte mesmo.
Porque vamos combinar, é bonito, né? A galera estranha um pouco num primeiro momento, mas não é uma parada que você olha e fala: meu Deus, isso é sexo.
Ada: Não é uma coisa que vai ser ofensiva pra quem tá passando. Está todo mundo de roupa, não vai chocar.
Munch, o pessoal no Brasil não usa muito essa palavra. Tem algumas pessoas que usam, mas munch é a ideia de reunir praticantes num ambiente baunilha, num contexto baunilha, tipo, num restaurante, numa lanchonete, num parque, pra trocar ideia mesmo.
Kali: Pelo que eu entendi, do que eu li sobre os munches gringos, o munch sempre tem comida envolvida. Sempre rola um petisco, uma jantinha, um churrasco, e a galera batendo papo e discutindo assuntos BDSM. A galera vai pra falar de BDSM, mas sem estar montado, todo mundo mais relax. É um evento relax onde ninguém pratica. Se discute, mas não se pratica.
Fora isso, temos também os grupos de estudos, que são relativamente raros, mas eu, Kali, quando entrei no meio BDSM, eu caí de paraquedas numa galera, chamava Not Vanilla, nosso grupinho, era meio que uma leather family, e a gente se reunia toda quarta-feira pra falar de BDSM. A gente se reunia num bar, mas a gente sentava, fechava o bar pra gente, a gente fazia palestra, tinha demonstração, tinha prática, tinha tudo, era um grupo de estudos, não era um munch porque a gente praticava.
A gente chegava, sentava, tinha um tema, aquele era o tema do dia e todo mundo praticava aquele tema. Teve vários mini-workshops.
Ada: Ai, que gostoso!
Kali: Isso, inclusive, spoiler alert, é uma coisa que eu estou querendo reorganizar em Curitiba.
Hugo: Saudades do grupo de estudos de Shibari em Brasília na A Pilastra.
A gente se reunia quinzenalmente, aos domingos à tarde, pra ir aprendendo. As meninas participaram de uma exposição, foram convidadas pra fazer uma parte de uma exposição, acho que dois anos atrás. E a interação entre Shibari e arte é muito grande.
A Helô organizou alguns ensaios no IDA (Instituto de Artes), na UnB, com modelo vivo amarrado, a gente chegou a organizar alguns na A Pilastra também, de modelo vivo amarrado pras pessoas desenharem.
Ada: Que massa!
Hugo: E, por fim, imediatamente antes da pandemia, a gente abriu a nossa exposição na A Pilastra. Só sobre Shibari, a exposição chamada Nawa Yaoi. A gente se reunia quinzenalmente, na A Pilastra e uma vez por mês tinha Atados no CCBB em Brasília, e ficava se amarrando lá no gramado. Saudades.
Kali: Vou falar uma real, eu também estou com saudades do pessoal de Brasília, tem uma galera muito legal lá. Eu estou com bastante saudades do Atados aqui também, de Curitiba, de chegar e sentar no parque com a galera conversar, dar risada e discutir política enquanto amarra, enquanto come porcaria, enquanto come Pipoteca.
Uma coisa muito comum nos eventos são essas proibições que a Alene estava falando de, por exemplo, não poder fazer sexo com penetração ou sexo oral. Esses dias eu fui num evento em que a única regra era que não podia dedo no olho e nem uso de drogas.
Ada: Que delícia, todo o resto podia então?
Kali: Todo o resto podia.
Ada: Mas são eventos raros esses.
Hugo: E são eventos bem fechados, porque não se conhece a índole de todo mundo. Então tem que selecionar bem para as pessoas, principalmente, entenderem o que está acontecendo. Pode ser que a pessoa fique ali animada, emocionada e queira fazer besteira.
Kali: Isso pode acontecer realmente. Por exemplo, nesse evento, a regra para você levar o seu convidado, era que ele não fosse tretado com as outras pessoas e que não fosse gerar constrangimentos. Pessoas que têm atrito entre si, a gente sabe que a comunidade tem atrito, né?
Mas uma outra regra era não usar drogas. Eu acho que faz todo sentido não usar drogas num ambiente BDSM, porque você vai estar fazendo coisas arriscadas. Uma coisa gostosa que rolou lá aquele dia, que não rola nas festas normais é que a gente viu uma sissy receber uma inversão da dona. Foi com uma dupla penetração, com outra domme junto, e depois chegou uma terceira domme para a sissy chupar, enquanto ela levava dois. Foi super legal, foi uma cena muito sexy.
Ada: Como você não me falou isso no dia seguinte, amiga? Você me contou outros pedaços, mas esse não. Que cena incrível. Nossa, queria… Você tava focada em outras coisas, né?
Kali: Eu estava focada mais no que eu participei do que no que eu assisti.
Hugo: Continuando, eu acho que é isso, existem vários eventos e sempre tudo dentro da comunicação, consentimento, segurança.
Kali: Lembrem, é consentimento e não consenso. Consenso a gente nunca vai obter no meio BDSM, porque se tem uma coisa que a galera não concorda é a liturgia. Mas, né?
Hugo: Existe ou não existe liturgia, Alene?
Ada: Essa questão é complexa. A liturgia do jeito que é defendido… Olha, o Hugo lança a pergunta e vai no banheiro, e vai pegar água e tipo, dane-se, vou só deixar elas com a bucha.
A liturgia do jeito que a galera velha guarda, ou os "litúrgicos" falam, essa liturgia que eles citam não existe, na minha opinião. Porque eles falam de uma forma como se existisse uma única regra do BDSM e você tem que seguir a liturgia, se você não seguir a liturgia, você está fazendo BDSM errado.
Mas ninguém tem a liturgia pra dar pra gente, escrita tipo um conjunto de regras, um conjunto de protocolos. Então chama de conjunto de protocolos, não chama de "a liturgia" como se fosse um único item. Porque assim, o que vai ter protocolos? Eventos vão ter protocolos e relações vão ter protocolos.
Kali: Locais também. Por exemplo, o The Office tem um protocolo, o Dominatrix tem outro e o Studio SM tem outro. São três locais totalmente diferentes, cada um com seu protocolo.
Só aí já matou o conceito de liturgia que os super litúrgicos, né? A galera old school brasileira diz que é liturgia. E daí as relações vão ter protocolos… Beleza, a minha vai ter um, a tua vai ter outro e aí acabou.
Ada: É exatamente isso. A gente acredita que você pode falar que o protocolo da minha relação é essa, a liturgia, se você quer tanto usar essa palavra, a liturgia da minha relação é essa, mas no fim das contas vai ser usado por quem concorda com elas. Então não é uma absoluta pra todo mundo.
Um top pode gostar que a bottom fique no chão o tempo inteiro, enquanto outro quer que ela fique de pé pra poder olhar alguma coisa, enquanto um quer que use salto, outro quer que não use salto… não existe uma verdade absoluta, cada um vai definir a regra da sua…
Kali: Existe uma.
Ada: Ah, existe uma verdade absoluta, fala pra gente.
Kali: Existe uma regra universal. A gente entrou várias vezes nesse debate sobre a liturgia e eu caguei uma regra, e vou cagar pra vocês aqui de novo, e eu duvido que vocês vão discordar de mim. Nesse momento eu não passo frio porque eu tô coberta de razão.
O que eu considero a grande sacada da liturgia mesmo, de o que realmente é a liturgia no BDSM pra todo mundo, regra universal obrigatória é o consentimento. Se não tem consentimento, não é BDSM. É só isso, é a única coisa que todo mundo, velha guarda, nova guarda, galera que chegou ontem, galera que tá aqui há 10 anos, galera que tá aqui há 30 anos… todo mundo concorda que se não tem consentimento não é BDSM.
Essa é a única liturgia. O resto é... cada um faz a sua regra pessoal. A gente sabe que tem que seguir as bases, tem que escolher uma base pra chamar de sua e seguir ela direitinho. Numa relação alguém manda, alguém obedece. Na outra relação alguém bate, outra apanha, alguém manda, o outro desobedece e depois apanha, depois é disciplinado… e por aí vai.
A gente sabe que tem a hierarquia das relações e ela deve ser respeitada por aqueles que estão dentro das relações, isto é, se eu não sou o seu top, eu não posso exigir nada de você, a única coisa que eu posso exigir de você é respeito. Se eu não negociei com você, eu não tenho o seu consentimento pra jogar com você nem pra exigir nada de você. Então acabou, essa é a grande sacada, essa é a grande liturgia: o consentimento.
Hugo: Poxa, achei que seria aqui que eu veria uma régua onde marca um passo e meio atrás.
Kali: Não, não vai. No meu caso, eu gosto que as subs, as meninas especificamente, andem dois passos na minha frente pra eu poder ficar vendo a bunda delas.
Hugo: Essa piadinha do um passo e meio é porque existe dentro do que se é dito como liturgia, como regras, que o sub deve andar um passo e meio atrás do top. E eu nunca entendi a ideia do "passo e meio", mas tudo bem. Às vezes é uma questão minha de inteligência.
Ada: Como medir um meio passo, né?
Kali: Eu já vi como dois passos. A submissa tem que andar dois passos atrás do dominador, essa é a regra da liturgia que eu recebi como "isso é liturgia". A submissa tem que andar atrás do dominador, tá, e eu que sou domme, faço o quê?
Hugo: É consenso entre a gente que o uso de honoríficos só para aqueles que estão dentro daquela relação. Você não pode exigir que ninguém use honorífico pra você, a não ser que você esteja naquela relação.
Ada: Honoríficos são aqueles termos como senhor, senhora, dono, madame, rainha…
Cara, desculpa, mas você tem que conquistar o direito de me chamar de rainha, entendeu? Você tem que ter intimidade comigo. Não vai conseguir nada só me chamando de rainha aleatoriamente.
Kali: Por exemplo, chego num grupo de whatsapp e não conheço ninguém ali, vou ficar exigindo que a galera me chame de senhora? Não vou, pelo amor de Deus! Não faz nem sentido. Cheguei num lugar, a pessoa não me conhece, ela vai me chamar de senhora? Não vai.
Por exemplo, a gente sabe que tem amigos nossos que têm esse fetiche, de chamar o outro por honoríficos, né?
Eu acho muito legal que as pessoas perguntam "Você gosta? Posso?". Se você falar "não"... que você pode não consentir a isso também, você pode não querer, a pessoa respeita e tá bom.
Ada: Eu tenho um exemplo bem claro disso. Pra mim, se alguém me chama de senhora, eu fico com tesão, entendeu? Se todo mundo me chamar de senhora, eu fico confusa. Porque é gatilho de tesão.
Fora do momento de tesão, eu fico, tipo, por que essa pessoa tá me chamando de senhora? Se algum amigo baunilha fala de brincadeira "tá bom, sim senhora", eu falo: não fala assim, que eu fico com tesão.
Eu gosto de contextos específicos de jogo. Fora de jogo meu corpo fica meio confuso, tipo, por que essa pessoa tá me chamando de senhora?
Kali: Rainha não me dá tesão, senhora me dá. Mas, senhora me dá tesão dependendo de quem tá chamando.
Ada: Por isso que dependendo da pessoa eu fico confusa e aí eu faço essa piada.
Kali: Se é algum amigo eu falo também, tipo, não fala assim que eu gosto, vou começar a distribuir ordens se me chamar assim.
A gente falou bastante sobre os eventos, né? E sobre as sessões e as cenas, etc… É muito gostoso passar por tudo isso. Uma coisa que ocorre muito durante as cenas ou sessões é o space. O que é o space?
Temos o que eles chamam de "subspace", que na verdade deveria ser "bottom space", mas o nome subspace pegou porque é um nome muito legal. E tem o "top space".
O que é o space?
Ada: Existem várias definições de space, eu acho que tem pelo menos três que as pessoas usam bastante. Tipo, do mais leve ao mais aprofundado e perigoso.
Kali: Eu defino como um estado alterado de consciência, que tanto top quanto bottom estão sujeitos durante a prática, e esse estado tem a ver com as alterações hormonais que você sofre durante a prática.
Às vezes você está num estado de imersão tão grande que a tua consciência se altera. Posso falar, com propriedade, do rope space, que é o top space no qual eu entro sempre amarrando, porque é o que ocorre com mais frequência.
Pra mim, ele é um estado de hiperfoco, de concentração. Eu dei uma pesquisada sobre isso, os hormônios que sobem durante o rope space pro top são a noradrenalina, que aumenta a concentração e foco; a GABA, que te deixa num estado de calma, você fica zen pra caramba e as endorfinas. E quando você está saindo desse estado de space, desce a noradrenalina e sobe a adrenalina normal, e sobe a dopamina, que quando você tá sentindo prazer.
É muito doido, parece que cria uma bolha, um espaço, ao redor de você e do bottom, e só existe vocês ali, e aquele silêncio, a música fica longe, as pessoas ficam longe, as vozes ficam longe, você consegue ouvir a respiração da pessoa, mesmo com barulho, parece que as luzes ficam esquisitas, o mundo tá em câmera lenta e você tá fazendo tudo bem devagar.
E, na verdade, você tá lá super rápido, super concentrado fazendo um monte de coisa ao mesmo tempo, amarrando, e aquela fica uma imersão assim… Pra mim, quando eu tô lá no meio, parece que o meu corpo inteiro tá reverberando com a outra pessoa, parece que eu tô sentindo a outra pessoa no meu corpo inteiro. Eu me sinto mais forte, parece que eu faço menos força pra descer uma pessoa maior de uma suspensão ou pra subir, etc, e o meu sadismo aflora bastante, um desdobramento recente.
Normalmente, em quem entra em subspace são as serotoninas e endorfinas que sobem, e a adrenalina, porque normalmente a pessoa tá naquele estado de luta ou fuga. O bottom tá geralmente amarradinho, tá presinho, nem que seja de uma ordem, tipo "não sai daqui". Mas ele está ali tremendo de medo.
Hugo: Não dá pra sair correndo, normalmente.
Kali: Existem outras definições de space e tudo mais…
Ada: Acho que tem desde o space mais leve do tipo: ah, estou me sentindo nesse espaço mental, estou embarcada nessa coisa que eu estou fazendo. Até esse nível mais intermediário que eu vejo isso como a Kali descreveu, que pro bottom vai ser aquela coisa de de imersão, de sentir diferente, de aumentar a sensibilidade, mas a pessoa ainda tem consciência. Ela está muito imersa, mas ela sabe o que ela tá fazendo, ela sabe o que tá sentindo, se alguém conversar com ela talvez ela demore um segundinho, mas vai conseguir responder. Está tudo associado a esses hormônios e tudo mais.
E tem também o space quando ele começa a ficar perigoso, que é quando a pessoa pode ficar totalmente não responsiva e não ter capacidade de se comunicar e talvez aguentar muito mais dor do que ela aguentaria normalmente o que vai causar uma recuperação mais difícil pra ela depois, no caso do bottom.
Kali: Essa é a hora que você não tá mais são o suficiente, não tá mais capaz de responder, não tá mais capaz de consentir. Se eu ver que o bottom com quem eu tô jogando entrou nesse espaço, eu vou tentar trazer ele de volta pra um space intermediário, pra que ele ou possa voltar a ser capaz de consentir ou se eu ver que ele não vai sair desse space tão facilmente, eu encerro a sessão ali. E vou trazendo ele de volta bem devagarzinho pra não dar uma queda muito abrupta nos hormônios.
Hugo: Pra quem nunca teve contato com BDSM, dentre os vários sintomas, vamos dizer assim, a pessoa parece bêbada e quando você pergunta pra ela, ela não vai conseguir te responder de forma clara e concisa, você vai escutar uma resposta meio balbuciada, alguma coisa que às vezes não faz sentido.
Kali: Parece que a pessoa acabou de acordar.
Ada: A pessoa fica meio grogue.
Kali: Ou voltou de uma anestesia.
Ada: Como se os hormônios fossem drogas no organismo da pessoa, porque teve um pico muito grande de uns hormônios muito loucos. E tem vários que podem subir nessa situação, nesse momento, os que a Kali falou e alguns outros. As pessoas que entram nesse estado, principalmente o subspace, quando é muito aprofundado, as pessoas costumam descrever como uma situação meio aterrorizante, que precisa tirar mesmo como a gente falou.
E é muito importante, se você tem tendência a entrar em space em que você fica um pouco não verbal, que suas reações ficam um pouco mais lentas, você entender isso, comunicar isso na negociação e que a pessoa que vai jogar com você tenha consciência disso o tempo inteiro. Porque quando a pessoa tá em space muito pesado, ela tem tendência a aguentar mais do que aguentaria se estivesse totalmente sã.
Muitas vezes é melhor só parar e trazer a pessoa de volta, porque pode ser perigoso mesmo. Ou pode ser essa situação intermediária, é como se fossem 3 definições diferentes pro space, cada pessoa enxerga de um jeito. Essa coisa mais intermediária que é uma coisa gostosa, que muita gente busca.
E o top space é isso que a Kali citou quando aconteceu com ela. São hormônios diferentes e tem essa coisa da concentração aumentar, só você e o bottom existem, mas também pode chegar num lugar perigoso. Chegar num ponto em que, por exemplo, você não consegue ouvir uma safe. Então é importante conhecer os seus padrões e conseguir ter consciência ainda do que você está fazendo.
Kali: Uma outra coisa que eu acho que pode ser arriscada também do top space, eu me sinto fazendo menos esforço pra descer uma pessoa grande de uma suspensão. Isso pode levar, por exemplo, se eu entrasse num top space mais profundo, aquela sensação de eu posso tudo, eu sou herói, eu sou invencível.
Hugo: E o seu corpo vai te lembrar disso amanhã.
Kali: Nossa senhora, cara. Independentemente do tipo de space que se entra, ou mesmo se você nem entrar em space, o seu corpo vai te lembrar amanhã, porque temos em muitos casos o drop.
Às vezes é algumas horas depois, às vezes é no dia seguinte, às vezes é que nem no meu caso, que é um dia e pouquinho depois.
O drop é quando todos esses hormônios que subiram, baixam de volta, zerou tudo e você tá lá tipo, sofrendo porque acabou. Você não, né? Seus receptores no cérebro, teu cérebro tá lá: "Cadê minhas drogas? cadê meus hormônios? Eu quero!"
E você tá lá sofrendo, chateado, amuadinho aquela deprêzinha. Mas o drop vai ser diferente pra cada um? Com certeza! Vai ser diferente pra tops e bottoms, vai ser diferente conforme a sua personalidade.
Ada: E não está atrelado ao space necessariamente. Para ter drop, você não precisa ter tido space. Tipo, se você teve space muito intenso, tem mais chance de você ter um drop intenso, mas pode ter sido uma cena em que aconteceu tudo bem, ninguém entrou em space profundo, teve um aftercare bacana, foi tudo show e mesmo assim você ter drop no dia seguinte.
Kali: Ele não está atrelado a falta ou a um aftercare ruim. A gente sabe que um bom aftercare minimiza os efeitos do drop porque ele faz com que você desça mais devagar dessa montanha russa de hormônios, mas mesmo assim ainda é uma montanha russa. Mas não é regra que você vai ter drop sempre ou que todo mundo vai ter drop.
Tem gente que não tem, tem gente que tem toda vez, eu tenho toda vez. Tô há 100 mil anos no meio e até hoje eu acho que não teve uma sessão que eu fiz na minha vida toda que eu não tive drop. Ah mas talvez seja porque eu preciso fazer um aftercare mais longo? As cenas e sessões em que eu fiz aftercare e as que eu não fiz, eu tive drop. A maioria delas, na verdade, eu preciso de um aftercare durante o drop, assim ele melhora mais rápido.
Ada: É importante esse aftercare durante mesmo, quando aparece o drop, pra ter aquelas palavras de afirmação, né? Porque às vezes o drop tem a ver tristeza, uma coisa meio uma depressãozinha, às vezes você fica meio doentinho, meio gripado, porque dá uma abaixada na imunidade também.
Tem várias formas que isso pode aparecer e o importante é você ter consciência de que você está em drop e manter essa conversa, manter esse aftercare. Eu comparo muito com a sensação de fazer uma viagem muito boa. Sabe quando você faz uma viagem que é incrível? Que você faz mil coisas, fica o dia inteiro na rua, nossa, maravilhosa. E aí você volta pra casa, os primeiros dias não são meio tipo "que saco", dá aquela tristeza, você queria voltar pra viagem. É mais ou menos essa a sensação que o drop pode dar.
Hugo: E aquela sensação de abstinência de algo bom. É muito curioso, principalmente pras pessoas que tem pelas primeiras vezes. As pessoas acordam meio de bode, com aquela ressaquinha.
Às vezes é normal até que as pessoas esqueçam de reconhecer porque que elas estão assim, né? Então é quando você identifica o drop. E aí vem aquela questão que a gente abriu lá no início do podcast: como é que faz essa pessoa que tem 35 mil subs, como é que ela cuida do drop de 30 mil subs?
Kali: E eu já penso, como é que ela faz tanta sessão e como é que ela não morre de drop? Nossa senhora! Admiro muito. Se eu tivesse, sei lá, três subs, eu iria viver em drop.
Ada: E esse foi o nosso episódio de hoje! Episódio 2 do Chicotadas "Princípios Básicos do BDSM 2" e no terceiro episódio a gente vai continuar falando de mais princípios básicos, vai ser um episódio sobre tops, bottoms, relações e dinâmicas.
A gente vai abrir os guarda-chuvas do top e do bottom, falar de vários tipos de tops, vários tipos de bottoms e vários tipos de dinâmicas baseadas nesses títulos, e diferentes tipos de transferência de poder, de troca de poder, esse tipo de coisa que é tão importante no BDSM. Pra você que tá buscando estabelecer relações.
A gente ia falar sobre a gente, mas achamos melhor deixar pro episódio 4. No episódio 4 vai ser um episódio sobre a nossa jornada no BDSM, como a gente descobriu, como foi o nosso processo de autoaceitação, quais são as nossas práticas preferidas, esse tipo de história pra vocês nos conhecerem melhor.
A gente se vê nos próximos episódios, se você tiver qualquer comentário a fazer, seja feedback positivo, puxão de orelha, alguma pergunta pra gente responder ou alguma história que você queira contar, manda uma mensagem pra gente. O instagram do podcast é @chicotadaspodcast e você também pode enviar um e-mail para chicotadaspodcast@gmail.com ou uma mensagem anônima pro Curious Cat, que também é chicotadaspodcast. Manda que a gente vai adorar e pode ler a sua mensagem, sem revelar o seu nome, é claro, em um dos nossos próximos episódios.
Para entrar em contato pessoalmente com cada um é só nos seguir nos arrobas do instagram, o meu é @rainha.ada.
Kali: O meu é @riggerkali.
Hugo: O meu é @aprendiz_bondage.
Kali: E esse foi o Chicotadas de hoje, obrigado a você que nos ouviu até aqui, esperamos que tenha gostado. Lembrando que nós somos apenas amigos, não especialistas, que amam esse universo e que querem tornar o conteúdo sobre BDSM, sexualidades alternativas e não monogamia mais acessível para mais brasileiros. Não temos nenhuma intenção de ser os donos da verdade e queremos criar um ambiente saudável para troca de experiências e o debate com vocês que nos escutam. Nossos episódios serão lançados a cada duas semanas, sempre nas segundas-feiras e esperamos te ver de volta por aqui no próximo.
Com o fim da nossa sessão, chegou a hora do aftercare, qual vai ser o aftercare de vocês hoje?
Hugo: Já são 18h, eu tô com fome, vou comer, vai ser meu aftercare, sempre começa com comida mesmo, tá bem realista. Eu vou comer e ver uns tutoriais, que amanhã é segunda-feira e voltamos pra rotina.
Ada: Eu vou editar podcasts e tomar uma cervejinha, provavelmente. A gente tá gravando na semana em que vai sair o nosso piloto e eu tô muito ansiosa pra terminar esse arquivo e postar logo!
Kali: Meu aftercare, hoje, vai ser dar colo pro gato e escrever meu TCC. A gente encerra por aqui, até a próxima e bom aftercare pra vocês.
Hugo: Bom aftercare. Tchau, tchau.
Kali: Bom aftercare, gente. Beijo!
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Bônus
A Nova Era do Chicotadas (Tudo sobre as novidades da reestreia do podcast: identidade nova, lançamento do site, transcrições de episódios e muito mais.)

Clube dos Apoiadores #12
Vivências Assexuais no BDSM e na Não Monogamia (Uma conversa sobre assexualidade, demissexualidade, atração sexual e romântica, relatos e experiências)